A partir da experiência do cinema, estudantes da Licenciatura em Educomunicação foram desafiados a produzir textos coletivos sobre filmes que dialogam com o universo da Comunicação/Educação. A proposta é reunir diferentes percepções sobre um mesmo filme e construir coletivamente um ensaio. Os resultados do trabalho serão publicados por aqui.
Hoje, temos o texto de Cláudio Aparecido de Oliveira e Cristian Lofredo sobre o filme ‘Dentro de Casa’.
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Por Cláudio Aparecido de Oliveira e Cristian Lofredo
Nosso objetivo neste trabalho é alcançar o preenchimento dos quesitos quanto a proposta do trabalho final neste texto, cujo objetivo é analisar leigamente a densidade psicológica do filme, que, a partir das noções de fetichismo e voyeurismo que envolve as diferentes construções e funções da problemática do olhar que em sentido mais amplo, remete o espectador à reflexão e incendeia sua criatividade e desejos obscuros e recalcados que subverte o texto escrito e o verbal em concomitância com os sentidos da visualidade expressos na materialização variada dos atos de olhar. Começamos por destrinchar detalhadamente o enredo criado po François Ozon. Depois, avançamos, ponto a ponto, nas reflexões sobre como esse filme dialoga com a Educomunicação. Boa viagem!
O filme conta a história de um professor do ensino médio, cansado da rotina de professor, que só se sente reanimado ao encontrar uma excelente redação em meio as redações que está corrigindo. Ele fica impressionado com a escrita, história e perspectiva usada pelo seu aluno Claude, ao narrar um dia na casa de seu colga de sala, Rafa. Incentivado pelo professor, toda semana Claude entrega uma nova história e eles discutem e analisam a narrativa.
A dramaturgia das cenas desta intrigante narrativa em ‘Dentro de Casa’ de François Ozon (2012) concatena muitos microcosmos e pode induzir às mais díspares leituras. São muitos infinitos particulares presentes numa missão pedagógica e psicológica de dimensões que beiram o assombroso. A frivolidade sempre paralela à fantasia causa um enorme estranhamento, constante no filme. Há um engendramento de sucessivas identificações que podemos quiçá estabelecer tanto com o professor Germain quanto com seu aluno Claude, na trama que tece o estudo dirigido de literatura entre eles, numa relação extremamente atravessadora e biunívoca. Outras personagens femininas também são capitais para enfeixar e desfechar o enredo. A maneira como a história se desdobra é sutil e também atroz, um paradoxo, um constante conflito numa dialogia que perpassa o que há dentro e fora da diegese, e é justamente neste limiar onde as fronteiras entre “realidade” e ficção se diluem, se amalgamam, que a fruição estética do filme se faz mais potente.
Germain é um professor veterano que sempre deixa transparecer a impressão de que se trata de um intelectual frustrado. As coisas não parecem muito diferentes com a sua esposa Jeanne, cuja galeria de arte não tem a popularidade esperada. Portanto, é compreensível a descrença que Germain tem com sua própria carreira como pedagogo, pois os seus alunos só apresentam um desempenho não muito além do medíocre.
A falta de entusiasmo de Germain é substituída por euforia quando ele se depara com um texto fenomenal de um de seus alunos. Ao solicitar como atividade uma redação com tema livre para uma de suas turmas, Germain recebe de Claude um prólogo de uma história sobre uma família de classe média. Germain fica encantado com a fluência da narrativa e incentiva Claude a prosseguir.
A relação entre aluno e professor se estreita e logo vemos que Claude está se inspirando em uma família real. Precisamente, os Artole, que é composta pelo casal Esther e Rapha e Rapha filho. Com a intenção de se tornar íntimo dos Artole, Claude se aproxima de Rapha filho ao se oferecer para ajudá-lo na matéria de Matemática. Isso permite que ele contemple Esther mais de perto, uma mulher madura que se distrai com revistas de decoração para se esquecer do casamento insosso em que está presa.
Percebe-se claramente que neste filme não há somente o discurso sobre a mistura da ficção com a realidade, como também há a intenção de criar um clima de perigo em uma relação que iniciou inocente e que agora toma proporções inesperadas.
A linha narrativa da história de um professor de Francês que, ao ler as redações de seus alunos, descobre em um deles uma grande capacidade literária, ganha novos contornos quando a história que se conta torna-se “real”. Ou seja, é a narração de um dia em que ele esteve na casa de um colega de classe. A história se desenvolve tendo como base esta narrativa, que vai se construindo a cada ida do jovem autor a casa de seu colega.
Como podemos ver, a premissa, inicialmente, carrega profundas questões morais e éticas: é correto um aluno contar sobre a vida de outro em suas redações, expondo o cotidiano e a intimidade deste através de seu olhar apenas porque a história contada é uma boa história? O professor deveria apoiar seu aluno no desenvolvimento dessa narrativa, que podemos entender como imoral, só porque este tem um grande potencial como autor? Ou ele não deveria estimulá-lo, perdendo a oportunidade de ajudar na construção de alguém que pode vir a ser um grande autor se for ajudado? Não podemos, no entanto, resumir o filme só a essas questões, pois nele encontramos inúmeras outras, que envolvem classes sociais, metalinguagem, história pessoal do diretor, suspense, comédia, obsessão e jogos de poder, para enumerar algumas.
A construção da narrativa proporciona duas histórias que se confundem e se influenciam mutuamente: a contada pelo aluno, através de suas idas à casa de seu colega, expondo a intimidade deste ao mesmo tempo em que influencia seu cotidiano, e a vida pessoal e profissional do professor que se prende a história, juntamente com sua mulher, e não poupa esforços para ver a narrativa de seu aluno construída até o fim.
O interessante é que cada texto produzido por este é finalizada com “continua”, isto é, o fim fica sempre suspenso, deixando uma angustia do que virá e permitindo que o professor influencie ela através de críticas, o que lembrando muito os folhetins de outrora, nos quais o autor apresentava a obra incompleta para uma audiência que opinava e, assim, alterava no rumo da história contada.
A influência do professor acaba por levantar questões sobre quanto da narrativa é real, quanto não é fruto da imaginação do aluno, qual a liberdade que o autor tem para modificar a história que ele está contando, como as idéias surgem e se transformam em uma história, quanto uma história não é uma interpretação intersubjetiva da realidade, etc. Ou seja, há um diálogo do filme consigo mesmo, com os elementos que compõe uma história, como o papel do herói, que o coloca em uma discussão metalinguística.
A vida dos outros é tomada como ponto para a construção de narrativas, levantando estes questionamentos. O professor e a esposa lêem o trabalho do aluno que, através do seu voyeurismo, vai tomando conta dos dois personagens e influenciando sua relação. Ao mesmo tempo em que traz vida para o professor, torna-o obcecado pela história e nos transporta para as cenas lidas.
No começo, a voz em off e a imagem do casal lendo aparecem em maior quantidade, mas vão paulatinamente diminuindo ao longo do filme para que haja mais tempo às imagens da narração. O mais interessante é que, se o voyeurismo do aluno torna-se o do professor através da leitura, também se torna o nosso, sendo isto magistralmente conduzido pela mudança citada; tornamo-nos voyeurs da relação do professor com sua esposa e com o aluno.
Temos então um fetichismo da imagem, da história, que não é só do núcleo destes personagens, mas é nosso também. Dentro da Casa é, assim, uma história de voyeurismo e obsessão, que nos prende na cadeira quanto mais o professor se prende ao aluno. Ele, de certa forma, confunde-se com seu pupilo ao acreditar que este possa vir a ser o que ele não conseguiu ser: um escritor.
A relação dos dois subverte o status inicial de poder, gerando uma relação de manipulação com tons sádicos. O envolvimento dos dois também passa por certo fetichismo, pois o aluno torna-se um objeto de desejo, gerando uma ligação perturbadora entre os dois, uma ligação que também se torna a nossa.
O aluno é um personagem cuja história pessoal ficamos sem conhecer a fundo, quer dizer, sabemos mais sobre seu colega do que sobre ele. Talvez a única coisa forte que sabemos sobre ele é que não pertence à mesma classe social da família que observa, uma família de classe média. Ele expõe o seu desejo de participar desta, de pertencer a uma classe superior, de conhecer como essa família é. Há, então, uma exposição do cotidiano familiar de uma classe média, denunciando as suas relações conturbadas, falsas e também as honestas.
Se pensarmos no professor como um símbolo do que é essa classe média, temos um retrato conturbador desta: obcecada e perdida, precisando inventar histórias que lhe deem vida. Porém, se os personagens vivem esse cotidiano estranho, um grande mérito do diretor, e façamos jus, um mérito recorrente dele, é o não-julgamento de seus personagens; eles não são bons nem ruins, são pessoas vivendo uma vida, com os problemas cotidianos da classe média.
Porém, é justamente este indivíduo, o aluno, que, não pertencendo a esta classe, exerce um poder de interferência na vida de todos, modificando os cotidianos, sejam esses reais ou não. No final, inclusive, podemos questionar, através da narração do aluno que reaparece neste momento, se ele não inventou o que acabamos de ver. É no final, também, que talvez esteja a principal falha do filme, ele termina de forma previsível e até moralista.
O filme em sua perspectiva “obra-espectador”, desenvolve uma integração com o público a medida que constrói a partir do imaginário desse observador as conduções para a narrativa. Dessa maneira, o público se torna cúmplice e parte indissociável na narrativa das personagens, o que provoca uma espécie de impassibilidade no seu espectador que está definitivamente envolvido com a história e não é capaz de julgar as estranhas obsessões de Germain em relação a seu aluno.
Ozon como um dos principais diretores franceses atualmente desenvolve junto ao roteiro, um filme de grande impacto e astúcia. Com recursos de sombra e imagem, a fotografia do filme também exerce seu papel na construção de uma narrativa que perpassa pelo ideário de sonhos e ilusões com cenas de tons pastel e esfumaçados.
É inelutável o apelo e a provocação de uma inquietude erótica que permeia as ações dos personagens, chamemos de pulsão, desejo, perversão, amor, paixão, etc., destarte, percebamos que aprender, ensinar, o aprendizado em sentido estrito ou lato se dá justamente na medida em que trocamos e exercemos a alteridade com o outro, menos da transmissão hierárquica de um conhecimento prévio do que da intimidade, no campo do desconhecido, que se quer conhecer.
A pulsão ou paixão presente no personagem é que impulsiona suas ações. O filme assume caráter metalinguístico ao tratar destas motivações pessoais dos dois personagens centrais, assim como inserir entre eles a teoria da narrativa (nas cenas em que o professor, e mais tarde o aluno, esclarecem o movimento daquela narrativa em que estão envoltos e a busca do protagonista) que a muito se assemelha à Semiótica Narrativa; buscando explicar a produção de sentido nos textos produzidos pela humanidade, a teoria chegou a um modelo básico que pôde ser popularmente conhecido como “a jornada do herói”. O esquema estrutural da teoria é basicamente aquele apresentado pelo professor Germain a seu aluno: o herói busca um objeto de desejo, com o qual quer se encontrar (pessoa, ideal, desejo, etc) e para isso precisa empreender na narrativa, vencendo os obstáculos que lhe são apresentados e mostrando que tem ‘competência’ para realizar tal feito.
Esta teoria mais tarde seria invadida pelos preceitos freudianos de pulsão e ganha uma nova vertente denominada Semiótica das Paixões. Justamente, é defendido que, não só há um movimento do herói em todas as narrativas, mas que este movimento se inicia, necessariamente, pelo impulso de uma paixão. Como dito, na malha narrativa do filme de François Ozon, são dois os heróis que se deixam levar por suas pulsões a fim de entrar em conjunção com seu objeto de desejo. O professor, ao longo do filme, deixa claro seu descontentamento com sua própria perfomance no mundo literário, daí busca em seu aluno a genialidade que nunca teve. Afirma que o garoto têm ‘competência’ (como diriam os semioticistas) para atingir o objetivo da paixão que o move: a boa literatura. Ultrapassa diversos limites morais, e transgride a verosimilhança da narrativa cinematográfica, em busca de impulsionar Claude no encontro com a verdadeira e magnífica literatura. O abandono dos alicerces verossímeis, que apoiariam o filme no realismo, são dissolvidos à medida que os personagens mergulham nos fazeres da ficção literária.
Quando o professor se sente motivado, não há limites. O que era melancolia se transforma em pulsão e desejo. As nuances da relação entre o professor e o aluno, como se apoiam e se alimentam nesta interação, revela a importância do olhar docente com mais cuidado com os alunos, pode fazer toda diferença, dando potencialidade ao seu trabalho e a sua própria existência.
No filme, o professor motivado pelo progresso do seu aluno como um potencial escritor, é arrebatado por pulsão, desejo, perversão, amor, paixão, o que for. Mais do que se encaixar no viés erótico da história, isso tudo, é o que demonstra o sentimento do professor para com sua profissão, com sua missão de vida: o ensinar. São essas pulsões e desejos que o motivam, são elas que demonstram que os alunos podem ser um pouco seus filhos, já que ele mesmo não teve nenhum, que o ensinar é um ato poderoso, tão poderoso que pode se tornar obsessão.
No filme, a pulsão e o desejo se tornam obsessão. Uma vontade de estar dentro da vida das pessoas e interferir nas ações de um sistema. A mesma obsessão do professor Germain em interferir a história de Claude Garcia, era a obsessão de Claude em estar dentro da casa da família Rapha´s. E percebe-se que quanto mais próximo o observador está de seu objeto de estudo, maior a interferência no comportamento do objeto estudado.
O conhecimento burocrático é ineficaz, quando desconsidera experiências sensoriais e afetivas, sabendo que poderia trazer o prazer do conhecimento, e podemos observar em “Dentro da Casa”, de François Ozon, claramente, que essa “afetividade” foge do mesmo educativo audiovisual – Quando Germain dá início a um intrigante “brincadeira” entre pupilo e mestre, entretanto acaba por envolver esposa e a família de um colega de classe. Isso nos leva a questionamentos a respeito das possíveis relações entre os educadores/ educandos e os seus desdobramentos positivos e negativos.
Que tipo de relação o professor e o aluno devem ter? Que tipo de aproximação eles devem ter? Isso é difícil de medir, difícil de entender, mas, mesmo assim, nesse filme assim como em “Dentro de Casa”, percebemos que há exemplos do que não se deve fazer, ou seja, daquilo que não só não vai prejudicar o aprendizado do aluno, como afetará a vida pessoal de ambos. Uma relação entre um professor e um estudante é especialmente delicada, porque a convivência e a estrutura de poder podem corrompê-la e, ao invés de torná-la saudável e educativa, transformá-la em tóxica e prejudicial.
Até que ponto uma atenção individual ao aluno é saudável? E até que ponto uma relação puramente profissional, sem individualidade, é efetiva? Na escola, principalmente nos últimos anos do ensino fundamental e em todo o ensino médio, receber uma atenção extra do professor costuma deixar o aluno desconfortável. No filme isso é mostrado, não por Claude – um aluno fora da curva –, mas por Rapha. Na cena em em que Germain pede para algum dos alunos ler sua redação, ninguém se voluntaria. Quando Rapha é obrigado a ler, a cena passa um constrangimento tão grande que deixa o próprio espectador desconfortável. Nos identificamos com a cena porque já vivemos nesse meio, sabemos como os alunos podem ser maldosos e inescrupulosos. Mas por que essas situações acontecem? Por que procuramos passar despercebidos (pelo menos no âmbito acadêmico) a maior parte de nossa infância e puberdade?
O voyeurismo é um desejo constante em cada um de nós, sendo que em algumas pessoas ele é mais aguçado. O aluno Claude aguça cada vez mais o voyeurismo do seu professor Germain por meio dos capítulos de sua novela. A cada término de capítulo, Germain se sente mais atraído pela história, pois é rica em detalhes e descrições, muitas vezes irônicas e misteriosas.
A natureza humana possui um labirinto de desejos e fantasias, condicionalmente e incondicionalmente interligadas a estrutura cognitiva do sujeito. Isso nos remete à visão freudiana do desenvolvimento da sexualidade no individuo. Neste filme, além de outros quesitos, aflora o voyeurismo, que é resultado de recalques ocorridos durante a formação do individuo e que canaliza suas atitudes e curiosidades a respeito da sexualidade e demais aspectos intrínsecos da vida social.
Tanto para Freud quanto para Lacan, o estudo da dicotomia entre o sujeito e seu objeto de desejo, levou a afirmação de que “o inconsciente está dominado pela linguagem”. Ou seja, o discurso, a fala e a narrativa humana estão relacionadas a sua subjetividade. A possibilidade criativa, a inteligência da linguagem humana – seja oral, literária ou cinematográfica – está na malha narrativa dos discursos humanos. É na construção de nossas histórias que ficam latentes as buscas de nossos inconscientes, de nossas pulsões mais profundas. O desejo de vouyerismo destes personagens, que se nutrem pela observação da narrativa alheia (seja a narrativa real da vida dos Raphas, seja a narrativa literária de Claude para seu professor) e suas pulsões mais profundas (de conhecer os segredos e desejos da classe média ou os segredos da grande literatura) os movimentam a um caminho liderado pelo inconsciente. O diretor François Ozon direciona este movimento no filme, que em determinado momento desapega de seus construções verrosímeis e utiliza de recursos de montagem e direção de fotografia para construir uma atmosfera que, a cada cena, mergulha mais no mundo do inconsciente, instaurando uma atmosfera insólita e metalinguística na narrativa.
O professor como personagem do filme é muito engessado mesmo, parece ter sido construído para representar aquele tipo genérico de homem prepotente e cego, que acredita sempre ter a razão, mas vive num mundo projetado de praticamente um único ponto de vista, travado por seus temores e insucessos, mantém conservadas tanto suas certezas quanto incertezas, as quais o distancia cada vez mais da realidade, muita teoria e pouca experiência de vida vivida de fato, aquela que se entrega de fato para poder aprender a enxergar de vários ângulos, conseguiu ser iludido pelo personagem adolescente que embora sem muitos anos de experiência de vida parece ser um exímio jogador de xadrez, dotando de total controle sobre o movimento das figuras participantes através de ferramentas como a análise, síntese, lógica, dissimulação, sensibilidade, sensitividade, percepção e intuição dentre outras, e com elas forja a manipulação do ser que não tem a mesma diversidade de ferramentas para também forjar suas armas para se defender, ser o qual é seu professor.
Um momento no filme que comprova essa disparidade entre o garoto e o professor é na cena em que sua esposa pergunta se ele estava interessado sexualmente pelo garoto por não fazer mais sexo com ela, ele não se dá conta do final da história que já esta praticamente explícita, mas a pergunta dela vem do pensamento dela mesma já estar interessada sexualmente no menino que, somada a falta de sexo (maridão não fazia sexo desde o começo do filme), era inevitável, assim o fim do filme estava sendo entregue, pelo menos para os espectadores que enxergam as conexões, que não seria o caso de nosso personagem professor.
Filme muito rico em várias camadas como:
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Psicológica, como a questão do romance do garoto pela mulher mais velha como projeção subconsciente da mãe, leva referência de “Édipo Rei”, filme surrealista de Pasolini sobre tragédia grega de menino que na causa de tentar fugir do destino de fazer sexo com a mãe, leva como consequência a consumação deste fato. Diretor o qual é citado pelo professor como crítica ao rumo mais pornográfico que história estaria seguindo.
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Filosófica, o fato do garoto conversar e ensinar para seu professor na cena final do filme, fora de casa, parece totalmente inspirado no mito da caverna de Platão, no livro VII da República, em que o garoto (filósofo na República) entra dentro da casa (caverna no caso do mito de Platão), já enxergando as coisas com clareza retira professor da casa (caverna) que ao se deparar com toda a luz enfrenta cegueira temporária pela visão ofuscada, não enxerga nada a princípio, mas logo começa a enxergar as coisas como elas são, e não somente representações projetadas dos objetos, mas montando suas próprias representações através da leitura das imagens.
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Sexual, o filme aborda os desejos sexuais reprimidos na “normalidade” da nossa sociedade como o voyerismo do professor, o garoto questiona a subversão do aparente, da suposta perfeição e da normalidade ao criar várias situações não ortodoxas para sua história.
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Ética: empolgado com a narrativa do jovem, o professor continua incentivando o aluno a escrever sobre a família de Rafa. O apoio do professor e a vontade do jovem de escrever atravessam as questões éticas e morais, pois essa relação vai muito além da sala de aula. Além disso, Cloude invade e divulga em suas histórias as intimidades da família de Rafa, o que também é uma questão ética.
O filme, de certa forma, nos faz refletir sobre nossa própria vida. A forma como o garoto consegue mudar a vida das pessoas ao entrar na casa delas, escrevendo suas ações, nos faz questionar os problemas que temos e como podemos lidar com eles. O futuro é mutável, você pode escrevê-lo e ele será dessa forma. Ou pode se imaginar fazendo algo diferente e, também, imaginar como seria sua vida se fizesse esse algo. Seria como um “rascunho”. Se essa ideia for boa – ou mesmo se não for, mas você quer apostar nela -, pode pô-la em prática, como um texto escrito à caneta.
Parece ser apenas no clímax do filme que se torna descarada a denúncia à perversão que o professor apresentar perante o aluno. Somente quando a história que ele atua apenas na sua perspectiva voyeurista torna-se um história concreta, que invade a sua realidade na possibilidade de sua amante ter cometido adultério com o seu próprio aluno, é que o mito de Platão invade sua própria vida e ele se sente pertencente a esse mesmo contexto que até então observou: onde as pessoas são manipuláveis e suas histórias podem ser escritas de diversas formas e sob diversas perspectivas.
É interessante notar que tais temas são abordados de maneira intrigante, como uma amálgama de pequenos mistérios ao longo de todo o filme. Podemos entender como “pequenos mistérios” os pontos de clímax existentes no decorrer da narrativa, impulsionada pelo próprio poder de controle que o aluno, enquanto escritor, tem em relação ao professor, enquanto telespectador. Nesse sentido, nos vemos imobilizados diante da narrativa, assim como o professor, o qual apesar de criticar por diversas vezes a história criada pelo aluno, está nitidamente imerso aquele universo, onde a ficção e a realidade são quase que inseparáveis.
Outra relação pertinente no filme, é a de aluno/professor. Considerando o contexto inserto num sistema educativo tão, aparentemente, formalizado, o que se espera é que o professor tenha pujança em relação ao aluno, e não ao contrário, como no filme acontece. Essa troca de valores se dá, principalmente, pelo poder que o jovem escritor criou a partir de sua história, revelando o quão veemente é a narrativa ficcional sobre nós. O que se nota é a construção de um jogo: dentro da casa, uma realidade completamente reservada e particular, quase que uma virtualidade onde tudo acontece e é possível; fora dela, a realidade concreta, o conflito de problemas e sentimentos reais, que se materializa apenas fora da casa.
Uma outra análise possível vem expressa a partir do viés de igualdade, que pode ser uma referência a um dos lemas da Revolução Francesa, na busca pelos direitos coletivos.
No contexto do filme, a igualdade vem transvestida. A igualdade dos alunos é colocada a partir da obrigatoriedade de utilização do uniforme escolar. Todos, devem usar a mesma roupa e assim, dessa forma surge uma metáfora das vestes, pois, ao mesmo tempo que se vê uma massa de cinza e branco cobrindo a paisagem escolar, estas vestes deixam transparecer uma grande heterogeneidade de classes sociais, crenças, raças, desempenho escolar, gosto, opção sexual, etc que sobressai na dinâmica escolar chegando nos conflitos pessoais.
Entre todos os “iguais” que o uniforme cobria, existiam as diferenças, as descobertas, os objetivos individuais, os saberes, as habilidades e dificuldades de cada personagem.
Dentro desse princípio de igualdade dentro da diversidade marcado pelo uso do uniforme e enfatizado no discurso do diretor logo no início do filme, vale ressaltar a proposta pedagógica “pioneira” anunciada. O professor, que outrora já vinha revelado seu pessimismo e descontentamento a uma colega de trabalho no corredor, só reitera o quanto não crê no que está sendo dito pelo diretor com a expressão facial aparentemente esvaziada. Durante suas práticas em sala de aula não é perceptível o entusiasmo, assim como não se o vê enquanto corrige as produções textuais, até que se depara com o texto de Claude.
Dessa forma, o professor Germain escolhe Claude, que possui o dom da escrita, para ensinar “coisas da vida através da literatura” e acaba por depositar no aluno, uma expectativa e frustração individual de não ter conseguido escrever uma boa história. Claude, por sua vez, escolhe Rafa com sua fraqueza na matemática e estabelece vínculos que o levará a entrar na casa do colega, alcançando assim um desejo pessoal na busca por desvendar a rotina de uma família, diferente da sua, que ele há tempos observa.
Diante disso, descobre a intimidade da família, suas rotinas, suas fraquezas e também fortalezas. Acaba por interferir na dinâmica da casa, na vida de Rafa, de sua família assim como, através da escrita, do poder da narrativa, na vida de Germain e sua esposa.
Uma grande teia de relações e conflitos em busca de ideais individuais se cruzam e interferem uma a outro, ligadas pela narrativa e escrita de Claude. Não é possível traçar um linha de separação entre escola, família, literatura, arte, afinal todas essas esferas se entrelaçam na narrativa de Claude, numa teia contínua de acontecimentos encadeados. Um sequência ou consequência do outro, um alterando o outro.
Nesse sentido, a trama reflete bem o que é a vida real. Como boa parte das obras de ficção se propõem a fazer, mas não consegue. Utilizando o cenário da escola, o filme deixa ainda mais evidente como a construção da cultura e do conhecimento dos alunos é fruto de uma teia muito mais complexa do que a vida real. Por isso, aproveitando para fazer uma paralelo, a obra é bem sucedida ao transmitir a mensagem de que uma escola precisa se preocupar em ir além do conteúdo de livros e apostilas.
Tal construção e composição do conhecimento do aluno/educando muito se deve a experiência que ele têm fora do ambiente escolar, sejam elas as mais possíveis e diversas como uma simples brincadeira de rua. Todos nós podemos afirmar a partir de nossas próprias experiências e tentativas que o aprendizado também se dá fora das escolas-redomas. O que é importante pontuar é a necessidade que se tem do ambiente escolar estar preparado para aceitar e receber tais conhecimentos que a vida dos educandos traz a eles próprios e ao ambiente no qual todos se inserem.
A experiência faz-se relevante para a situação aprendizagem e podemos notar este movimento de forma bastante intensa no personagem Claude em sua relação com a escola, colegas que fazem parte do seu círculo de amizades, sua relação íntima e expositiva com seu professor e com a tarefa por ele proposta.A impressão que se têm é que nem educador e nem educando sabem quais são os limites proveitosos de trocas estritamente horizontais e democráticas para ambos os lados. Não há um manual para o educador e nem mesmo para o aluno, que acaba por esperar que esta relação com os limites da proximidade entre os dois seja colocado pelo professor.
A realidade é que como educomunicadores, não sabemos até onde podemos e devemos ir, estimular e propôr, sabemos apenas onde queremos chegar, em uma educação no que depender de nós, para a vida. Não há uma maneira certa, o que temos é certeza que ambos os lados dessa relação precisam despir-se de quaisquer amarras para o processo de aprendizagem mútuo, é preciso que o espaço onde isso ocorre seja livre para tentativas, espaço para erros e visão de que o processo é completamente passível de erros, bem como de acertos.
É preciso haja um olhar de um com o outro de ser humano, que sente e limita-se em inúmeros momentos. Talvez a relação de Claude e Germain cause desconfortos em nós porque se permitiram tentar, cada qual em seus momentos e instâncias, trocas completas em suas relações. Se elas foram positivas ou não, acredito que Ozon deixa a nosso crivo.
Claude, enquanto personagem que assume a intenção concreta de vir a se tornar um escritor, é apresentado a vários dilemas relevantes à criatividade, ao desenvolvimento de ficções e, principalmente, à responsabilidade social que toda produção artística carrega consigo. O professor Germain, todavia, se apresenta como elemento conectivo entre esses dilemas e suas possíveis resoluções, propondo práticas, metodologias e abordagens diferentes ao invés de simplesmente inundar o aluno de respostas.
Um trecho do filme que exemplifica uma questão recorrente no contexto de produção literária é o momento em que Claude insere um romance homossexual na trama, intencionando agradar as expectativas do professor (que, de maneira extremamente entranhada no sistema de ensino tradicional, acaba por se ver apresentado com esta postura comum da relação professor-aluno, onde um apresenta expectativas quanto ao ensino e outro simplesmente corresponde ou é reprovado) e, em seguida, é abordado pelo mesmo, diante da justificativa de que o romance pertence ao leitor e, uma vez que também é arte, deve essencialmente refletir para o espectador nada além de suas paixões mais profundas. No filme, o desenvolvimento e o resultado apresentando pelo aluno, Claude, demonstra como essa relação professor-aluno pode ser tão proveitosa quanto desastrosa e também, o quanto a situação pode chegar num estágio onde a linha fica muito tênue entre a invasão de privacidade e uma relação de confiança sólida.
O filme é bastante complexo, pois mostra várias tramas que se ligam ao passar do tempo e dos acontecimentos, tudo isso levando a um final inesperado, ou seja, os dois fora da escola, pois a atual estrutura social escolar não comporta tais atitudes.
O fato do aluno realizar o desejo do professor (escrever algo realmente interessante) em meio a alunos que não correspondiam, de dar-lhe uma esperança numa vida que nem ele mesmo (professor) sabia que não era o que queria, faz com que fiquemos intrigados e, como as personagens do filme, queiramos saber até onde vai dar, o que vai acontecer.
Realizamos nossos desejos ocultos através do filme, vivemos uma situação que não temos a oportunidade de viver e nos desafiamos a pensar em como seria se a vivêssemos.
O voyeurismo envolve o ato de observar indivíduos, sem estes suspeitarem que estão a ser observados. Normalmente, as pessoas observadas estão nuas, a despirem-se ou em atividade sexual. O ato de observar serve a finalidade de obter excitação sexual e geralmente não é tentada qualquer atividade sexual com a pessoa observada. Esta situação constitui a forma exclusiva de atividade sexual do indivíduo que observa.
Do ponto de vista psicológico, uma perversão é o desvio em relação ao processo sexual normal, ou seja, existe perversão numa situação em que um sujeito só sinta prazer sexual de outra forma que não a considerada via normal. No caso do voyeurismo, um indivíduo retira prazer ao ver alguém. Do ponto de vista psicanalítico, o voyeurismo é uma pulsão ativa e a finalidade é ver e ser visto. O voyeur sofre de desejos exibicionistas inconscientes.
O filme causa um impacto nas pessoas, principalmente aquelas que não tem um contato prévio com filmes nesse estilo. O final do filme é interessante, pois como em uma tela subdividida, mostra-se apartamentos em um prédio e a visualização de várias realidades estão numa cena só, a realidade de Claude, das mulheres que brigavam, no apartamento em que houve o tiroteio e isso tudo me levou a seguinte reflexão: Quantas vezes não somos nós os estranhos? Em quantas fotos de momentos importantes e inesquecíveis nós não fazemos parte e nem ao menos sabemos? E em quantas fotos nossas existem estranhos no fundo? A realidade é subjetiva, esse texto, inclusive demonstra isso, onde as várias pessoas que formam um coletivo, assistiram o mesmo filme e cada um observa uma parte do filme.