A partir da experiência do cinema, estudantes da Licenciatura em Educomunicação foram desafiados a produzir textos coletivos sobre filmes que dialogam com o universo da Comunicação/Educação. A proposta é reunir diferentes percepções sobre um mesmo filme e construir coletivamente um ensaio. Os resultados do trabalho serão publicados por aqui.
Hoje, temos o texto Gabriel Cruz, Mayara Nunes, Geisa Reis e Elis Amaral sobre o filme ‘No Reino das Mães’.
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Por Gabriel Cruz, Mayara Nunes, Geisa Reis e Elis Amaral.
A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante – nos a realidade do mundo e de nós mesmos (Arendt, Hannah – A Condição Humana)
Imagens do inconsciente: ‘No Reino das Mães’ é um documentário, filmado por Leon Hirszman em parceria com Nise da Silveira, que retrata a vida de Adelina, uma moça pobre, tímida e submissa a mãe que após se sujeitar a decisão da família de não aceitar seu namorado, inicia um processo de reclusão, de perda do logos, passando por fases vegetais – Adelina se desenha como mulher flor – todas descritas no filme através de pinturas e esculturas mostradas em um fundo preto.
Com uma fórmula aparentemente cliché/explicativa da linguagem cinematográfica- o fundo, preto e transições em fade in e fade out – o documentario esconde por trás um pensamento muito mais complexo, a vontade do diretor de mergulhar o espectador no Ego, ou melhor, na sombra do Ego, o inconsciente.
A participação polimórfica – onde todas as técnicas cinematográficas ocorrem para mergulhar o espectador tanto na atmosfera, como na ação do filme – é contraria a um primeiro entendimento de passividade diante das diversas imagens passadas sistematicamente diante dos nossos olhos.
As imagens feitas por Adelina são manifestações de um inconsciente sombrio, nascidas do estimulo à criação artística, onde a paciente estabelece um contato maior com o mundo exterior, “expulsando seus demônios” de uma certa forma, o que contribui para a mesma apresentar melhora clínica, uma autocura através da arte.
Arte Terapia e Educomunicação
A arte como recurso terapêutico tem suas primeiras experiências com Johann Reil, médico alemão. Mas foi com Carl Gustav Jung, conhecido como pai da psicologia analítica, psiquiatra e psicoterapeuta suíço que, ao focar seus estudos na natureza simbólica da psique humana, desenvolveu o conceito de arquétipo – imagens universais que se encontram no inconsciente coletivo e persistem através dos milênios refletindo-se em diversos aspectos da vida humana – o desenvolvimento desse conceito possibilitou um maior entendimento para desvendar as imagens produzidas pelos pacientes. Nise da Silveira trabalhava com a leitura Junguiana dos arquétipos. Como aluna de Jung, desenvolveu suas interpretações acerca dos temas recorrentes nas obras de arte de Adelina, fundamentada em três arquétipos: Hécate, Deméter e Maria.
O filme “No Reino das mães” nos conta a história de Adelina baseado nos relatos escritos por Nise da Silveira em seu livro de 1981 “Imagens do Inconsciente”, escrito quando trabalhou no hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro, aonde, ao recusar-se a utilizar de lobotomia ou eletrochoque para tratamento dos pacientes diagnosticados com esquizofrenia, revolucionou os procedimentos. Transferida para a área de Terapia Ocupacional do hospital atribuiu um novo significado à essa área que era praticamente inutilizada.
Reformou a sala de Terapia Ocupacional e passou a deixar os pacientes livres para criar através da arte, enquanto isso os observava e fazia anotações.
Nise apresenta semelhanças pontuais com a Educomunicação através de seu processo de cura pela expressão artística. Até então, com as práticas horrendas em manicômios (confira aqui para saber mais sobre as condições desumanas em manicômios no Brasil), o tratamento de pacientes se baseava majoritariamente em processos físicos, com eletrochoque, lobotomia e administração abusiva de sedativos.
O paciente, que em sua maioria era um indivíduo isolado socialmente, era desconsiderado como um ser com consciência, com vivência, com experiências sensíveis significativas e que poderiam ser estimuladas para se tornar esse elo psíquico com a realidade física, comum; a partir da influência de Nise, ao aplicar a liberdade de expressão dos pacientes através de processos estéticos e introspectivos (que, no caso, é o processo criativo artístico de expressão do Eu através de analogias, de metáforas e de livre associação com memórias sensitivas) para que, ao paciente se expressar à sua maneira única de entender o mundo sob a ótica especial de sua condição, ele mesmo comece a se ver da maneira que se entende, e não da maneira como o mundo à sua volta tenta definir. Este processo de respeito ao mundo interior de quem passa pelo processo lembra o conceito de considerar a vivência, experiência de mundo e conhecimentos do aluno em sala de aula, de torná-lo centro do próprio processo de aprendizado.
A instituição aparece como agente apagador das individualidades, que suprime a subjetividade para fins de controle . Uma das cenas usadas para representar o espaço manicomial apresenta várias mulheres que como Adelina usam vestidos azuis, as cores da instituição, a mesma cor das paredes e da roupa de todos. O indivíduo diluído não pode ser encontrado, não tem palavra, não tem rosto: onde está Adelina? (Relações com a escola ? Qualquer semelhança não é mera coincidência)
No retrato da instituição, são frequentes os corredores escuros que terminam em fachos esperançosos de luz. Adelina frequentemente é representada à janela, iluminada por uma luz exterior que contrasta com a escuridão e com os gestos padronizados de organização do manicômio.
Quando o paciente faz parte de seu próprio processo de cura, se torna mais provável que este se torne mais pertencente às próprias questões e, como se diz de maneira mais regular, acabe por se empoderar. A célebre frase, antigamente encontrada nas entrada do Oráculo de Delfos “conhece-te a ti mesmo” ilustra a relevância vital de todo ser humano confrontar o que sente com o que pensa, pesando contextos, momentos, ações, reações e memórias de modo crítico, afim de que conheçam como o que é exterior afeta o que é interior de sua consciência.
Fazendo o comparativo com a Educomunicação, é nítido o aumento da confiança do aluno que realmente se torna centro do próprio processo de aprendizado e vê as qualidades estimuladas. A escola tradicional desestimula a exploração de diferentes virtudes devido à abordagem lógica presente em todas as disciplinas, incluindo-se também neste problema a pouca flexibilidade das atividades no ambiente escolar, assim como também o espaço do aprendizado.
Esse documentário nos faz refletir sobre a importância da valorização da subjetividade. Como é possível através da arte, que até mesmo alguém diagnosticado com esquizofrenia, exteriorize seus sentimentos internos. E mais do que isso, nos mostra como a arte passa de pura expressão de um universo interior, para recurso comunicacional entre paciente e psiquiatra.
Devido à todas essas reflexões que proporciona é um filme com alto teor educativo, que com certeza pode e deve ser utilizado para levantar questionamentos à respeito dos modelos tradicionais presentes na sociedade e a importância de romper com tais modelos para que surjam alternativas mais eficazes, sejam elas no campo da educação, da psicologia, etc.
Para saber mais:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300012
http://www.doc.ubi.pt/04/artigo_luiz_vadico.pdf
Link do filme no You Tube:
https://www.youtube.com/watch?v=4ChaFsprUsI